quinta-feira, 30 de junho de 2011

a nôte da vinhaça de Beja, porra!

Uauf! Eu até gostava de vos falar de um vinho assim mordente, de casta nobre, capitoso, de aroma frutado e acidez balanceada, de cor intensa, aveludado - não fosse a minha capacidade de apreciação retronasal ser infinitamente superior à vossa, seus bípedes olfativamente limitados - o que me impede de fazer parte de qualquer painel de prova.

Mas, afinal, o que eu gostaria mesmo era de não perder a possibilidade de me roçar entre as muitas pernas depiladas e perfumadas que se irão passear por aqui - e de, claro, aproveitar a oportunidade de marcar, com uma ou outra mijadela, as históricas pedras do interior dessa fortaleza militar de defesa do território luso, que aqui, tão pomposamente denominam de «Castelo».

Portanto, hão-de-me ver à entrada, na tal noite, à espera de um requintado convite ao mais alto nível - pois se aqui vim parar é porque existem responsabilidades no modo como me aliciaram, lá, na minha Grande Ilha, e me convenceram a subir a bordo de um Embraer de 49 lugares - eu, que até aqui só tinha voado em gigantes da Boeing.


E, grrrrr..., sem querer ser intrometido... nnnhhffff!... nem agora, mesmo depois de toda a confusão territorial instalada por causa de uma bandeira, se prevê - até em nome do tão apregoado salvador regional, o Super-Pai Turismo  - a mudança do pepineiro e insípido -  como a água da torneira - do título da iniciativa - a rivalizar só com os milhares de Hotel Continental ou Internacional existentes por esse mundo fora?

Beja Wine Night? Como comentou ontem o meu pajem - que está ainda estendido na cama à espera que uma alma caridosa lhe venha dar um supositório de paracetamol, uma vacina de bom-humor e dois dedos de conversa, para se provar a si mesmo que está vivo, depois dos exageros da wine night de ontem, lá na tasca do Barbosa: 

- A modes qu´esse nomi aí da Bejauainenaiti é même de parvejar, atã tel nã é a moinha? Ou os moços tã fêtos mariolas, ou fumaram umas ganzas valentes ou sã manientes que nem um pirum inglês! É qu´um home fica assi a modes qu´assarampantade com tanta azelhice! Ora, uma coisa de assim pra bresuntar o pã, molhar o bico e ir pró balharico, cum nomi desses, que nã vale um chocalhe d´erva... e querem que povo s´arrime? E ós despois, a calhar, vã é ter um lindo enterro!  Estes maganos, com tante estude, houvera de nã ser marafados e de ter a cabeça no lugar - mas qual quê, os moços d´hoji nã estã p´ra cansêras, abocanham-se à primêra puta d´idêa que vem da estranja... Olha: era mandar-lhes com umas bordoadas bem dadas naqueles costados lêtosinhos cum´as varas de marmelêro - e havias de ver se nã amanhavam logo outro nomi mais jêtoso!  Houvera de ser era a nôte da vinhaça de Beja, porra! Tenho dite.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Sorry... sorry...

Uauf! - a primeira coisa que nos ensinam, lá, na Grande Ilha, é a ter maneiras. E sim, podem pensar à vontade que isto da fleuma britânica é uma mania - que, quem já viu tanto mundo como eu, em cima destas quatro patas, não se belisca com essas ironias.

Anos e anos de chazinho desde o berço - o vosso, por sinal, ou o que era vosso, vindo de Moçambique, que sempre foi o meu preferido - inculcaram-nos nos genes memórias celulares de educação e savoir-être.

Assim - e honni soit qui mal y pense -  embora sem ter sido chamado a meter pata ou focinho no assunto, este súbdito de Sua Majestade vem pedir-vos humildemente desculpas por ter contribuído, de forma tão brutal, para cavar um pouco mais do infindável poço lusitano das contas públicas.

Só de pensar que tenho em cima do pêlo o ónus de 380 mil euros, my friends, põe-me nervoso.

Muito nervoso.

Tenho de ir a correr ali à frente, ao jarrão da Dona Margarida aliviar a bexiga.

Porque é preciso ir buscar algum alívio para certas dores -  isn´t it?

AAUUUUUUUUUUUU!... God Save the Queen and keep us fed and clean!

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Cacos de Beja

Uauf! - que me perdoem os leitores mais assíduos por esta ausência, mas fiquei de súbito incapacitado da pata direita para bater as teclas do computador: um acidente, sim, uauf!, provocado pela incivilidade de uns e a incúria de outros.

Então andam por aí algumas almas zelozas a olhar para o chão a ver se encontram um rasto de urina, umas fezes descuidadas que não tenham sido cuidadosamente depositadas numa moita, a ver se apontam o dedo inquisidor a qualquer cauda que abane (a inveja de nos verem felizes!...) e não baixam a cabecinha para cheirar e apreciar o rasto de imundície e descuido que só pode ser imputado a Vªs Exªs, os bípedes bejenses!

E então vai uma alma descuidada e alegre como a minha em passeio descontraído pela mata desta cidade - nitidamente um espaço que entrou em autogestão florestal - a ter de se desviar dos carreiros abertos por entre toneladas de folhas secas, galhos quebrados e um embaraço de plantas espinhosas, de modo a poder dar lugar aos pobres de Cristo que, mesmo à torreira do sol insistem em correr como doidos - mas... fugindo de quem, de quê? - porque, de olhos esbugalhados, coração na boca, pele desidratada e auriculares nos ouvidos já não vêem nada à frente, nem sequer uma hesitação para parar - e eu sou um gentledog, dou sempre passagem - e quando salto para o lado, tenho de ter a precisão de um pára-quedista em busca de terra firme, para não aterrar em cima de cardos, latas de refrigerante, sacos de plástico, tábuas com pregos,  brinquedos partidos, lenços conspurcados, garrafas de plástico, cacos de tijolo, e... de vidro!...

E pois, of course, ao princípio não senti nada, mas depois, sim, confesso, gani - não sei se da dor se da estupidez de me ter deixado espetar por um pedaço de vidro afiado - e foi a ganir e a coxear que me arrastei até casa. O meu pajem veio esperar-me ao terraço, e, ao ver o rasto de sangue, desmaiou de imediato. 

Uivei perante aquela inépcia de quem, afinal, me deveria tratar, chamando a atenção da minha querida Dona Margarida, que - eu sou um sentimental, que querem, esta opção vai ficar para sempre registada no meu hipotálamo - ao ver-nos a ambos - o meu pajem dormindo no chão, e eu, a uivar de dorida incompreensão, pegou em mim e levou-me para sua casa - onde cuidadosamente  retirou, com a pinça de depilar as suas farfalhudas sobrancelhas - com as quais trava uma inglória luta diária - o vidro agressor. Lavou-me a ferida com uma coisa escura que tem nome de estrela de cinema francês - Geraldine, Bettydine, já não me lembro, ou, como diriam os nativos de aqui, «nã me alembra que tenho a cachola fervente» - e, dando-me uma palmadinha no quadril, disse-me, confiante

- Vá, vai andando, qu´isso é carne de cão e é melhor secar ao laréu!

Dei-lhe uma lambidela por aquela do laréu, que me soou tão bem. Atravessámos a rua e o meu pajem continuava estendido, pelo que foi necessário dar-lhe uma mangueirada, que o acordou de imediato.

- Atã home, é assim que trata o canito? Tanta força p´rá vinhaça e nã tem tomates p´rum bocado de sangue, home dum cabrom! - atirou-lhe a Margarida, e voltou-lhe costas.

Fiquei ali sentado a olhar para a tentativa de levantamento do meu esforçado pajem - agora luzindo um alto roxo no centro da testa, em monstro ciclópico, como se tivesse sido caracterizado para um qualquer filme do Anderson - a tentar perceber aquela ligação entre o vinho, os tomates e o sangue - mas pressupus que se referisse a uma iguaria gastronómica. Fiquei encantado foi com o «canito».

Canito... canito...é musical, não acham? Uf... uauf... esta jornada alentejana cansa.

Que não nos faltem os sofás para as merecidas sestas.

God Save the Queen and keep us fed and clean!

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Dia da Torneira

What a day! O meu pajem acordou hoje visivelmente bem disposto, abanou, à frente do meu focinho, uma caixa, onde qualquer coisa no seu interior se deslocou ruidosamente, e anunciou:

- É hoje! O Dia da Torneira!

A torneira - the faucet - é um objecto crucial no estancar ou jorrar de conteúdos. Geralmente água - mas nem sempre. Há quem feche a torneira das notícias, quem abra a torneira das condecorações, quem feche a torneira dos empréstimos, quem abra a torneira da emigração.

E assim, com uma boa disposição e energia invulgares, trauteando o Toreador razoavelmente afinado, dispôs-se, enfim, a substituir a torneira da cozinha cujo pinga-que-pinga há muito dera lugar a um fio de água constante, e, de há 48h para cá, obrigara ao fechar de outra faucet, a da segurança.

Eu mantive-me no  sofá, embalado pelo refrão «Toreador, en garde, Toreador, Toreador!», enquanto retirava, do pó da arrecadação, a maleta com meia dúzia de ferramentas, enferrujadas pelo desuso dos anos. Manter o nosso pajem entretido e satisfeito é meio caminho andado para a nossa tranquilidade - e, como, com os anos, vamos ficando mais sábios, cabe-nos orientar a permanente insatisfação e a excitabilidade humanas para actividades que nos deixem, a nós, canídeos, sossegados no nosso canto.

Interrompeu subitamente a canção quando, retirando uma chave inglesa - modesto contributo da Inglaterra aos mecânicos,  canalizadores e jogadores de Cluedo de todo o mundo - percebeu que os seus rolamentos estavam de tal modo colados e perros que nada havia a fazer. O rosto contraiu-se perante aquele contratempo - não, NÃO!!! Hoje tinha sido designado o Dia da Torneira!

Sentou-se, com aquela melancolia depressiva que tantas vezes o assalta, segurando a cabeça entre as mãos.
Eu sabia que tinha de despertar do meu lânguido torpor, se queria ter um dia pacífico; assim que saí porta fora e fui chamar a Dona Margarida, do outro lado da rua, uma boa alma, sempre pronta a escutar o outro - e que, aos meus latidos, supôs logo que a casa estivesse em chamas.

A Dona Margarida veio correndo como pôde atrás de mim, nos seus chinelos arrastados, entrou em casa e deu com a cabeça caída e segura por ambas as mãos do meu pajem - que ficou bastante embaraçado pela inesperada visita.

Palavra puxa palavra - muito precisam os humanos de falar para se entenderem! (e, por vezes, nem assim...) - a Dona Margarida saiu apressada para logo regressar de sorriso no rosto - e de chave inglesa na mão.

Como é fácil contentar um macho humano ferido pela desilusão! Apenas com a visão da chave inglesa, logo se animou e recomeçou a cantoria; a Dona Margarida seguiu-o para a cozinha comparando-o, embevecida, a um Carreras -  e eu, do sofá, pude, de vez em quando, erguer a pálpebra para seguir os acontecimentos.

Que se relatam deste modo: 
- retirou a torneira da parede (sempre cantando, a Dona Margarida aplaudindo), 
- colocou a torneira nova nos orifícios da parede (lançado em poderoso canto, já depois do refrão, a Dona Margarida, de braços roliços, segurando na torneira, enquanto ele torturava as roscas com a chave inglesa )
- pediu - sempre cantando, numa perigosa euforia - à Dona Margarida para ir ao pátio abrir a torneira de segurança, «por favooor... » (em si b) 
- constatou que a nova torneira não só não pingava e, que, portanto, vedava competentemente  a água, como que abria e fechava na perfeição (a Dona Margarida, feliz, regressando do pátio, e, pelo caminho, dando-me uma coçadela nas orelhas)
- e, num daqueles repentes que decidem o trágico destino dos homens, lançado de chave inglesa em riste, decide apertar mais e mais o que já estava sobejamente apertado (a Dona Margarida esbracejando com as mãos em aflição de sinalização para a avioneta que se parece despenhar); ouviu-se um «crac» surdo - e, de pronto, antes mesmo que a água começasse a jorrar furiosamente por entre as juntas da torneira, em todas as direcções - percebemos que a rosca partira, e a torneira nova se tornara, definitivamente, inútil. 

Completamente encharcado, o meu pajem parecia ter sucumbido perante o peso dos acontecimentos. A Dona Margarida retrocedeu o caminho para o pátio, ao socorro da torneira de segurança; procurou depois uma toalha para o secar, e suplicou-lhe que mudasse de roupa, enquanto lhe fazia um chá.

Como o chão da cozinha ainda está alagado, e a água começa a chegar à sala, para prevenir qualquer escorregadela, saí de casa em busca do canteiro mais próximo que me mereça uma mijadela. This little town está estranhamente parada. Parece que os bejenses levam muito a peito a celebração, em recolhimento e em exercício de mea culpa nacional, de um ilustre zarolho que deixaram morrer de fome e de esquecimento enquanto legava, às gerações futuras e ao mundo, a melhor poesia portuguesa.


God Save the Queen and keep us fed and clean!

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Grrrrr....

Hoje vou ser directo e talvez um pouco rude. Mas já me disseram que a rudeza é uma característica dos nativos de aqui. É-nos difícil compreender, a nós, que temos nos genes séculos de fleuma britânica, que os modos de relacionamento sejam, neste canto da Península Ibérica, ainda tão primários - com as invejas mal escondidas, as raivas adormecidas e as dores de cotovelo a arderem por... well, anything.

Ia a farejar num sítio que vocês em Beja chamam de Portas de Mértola, mas onde não vi nem um batente, quanto mais uma porta - embora ache interessante esta vossa capacidade de abstracção - quando o meu ouvido apurado percebeu, por entre a fala de meia dúzia de machos humanos que, nitidamente, se coçavam na parede, que falavam de... mim!

De mim???!!!... Uauf!

Apurei o ouvido - perplexo por merecer assim a atenção dos bejenses -  a tempo de perceber que o tema se resumia, no fundo, a uma certeza, que, no calor da discussão, ficava lavrada e assinada por todos os basbaques.

E a certeza era esta: eu mesmo - the dog - não seria eu, porque, afinal, tendo aterrado há apenas pouco mais de duas semanas em Beja,  nascido e criado nas terras de Sua Majestade, não poderia dominar o português com esta destreza e facilidade!

Ora, a esses incréus, só me resta uma pergunta, que, de tão óbvia, vai já acompanhada de uma valente mijadela:

- E, por acaso, nunca ouviram falar do Google Translator???!!!...

God Save the Queen and keep us fed and clean!

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Glamour de Beja

Esgueirei-me de novo pelo portão e fui ter com a Fifi à Praça da República. Estava sentida comigo, por não dar um cheiro de mim há dois dias, e levei com um ralhete de latidos que me fez amochar as orelhas (também é para isso que elas servem). Aquilo passou-lhe depressa - oxalá os bípedes  humanos pudessem aprender connosco - e, como hoje não chove (enfim!) e o sol lá se dignou aparecer, ela quis mostrar-me this little town - e, sobretudo, um novo sítio onde podíamos ir apreciar a fauna nativa numa das suas actividades favoritas: comprar, comprar, comprar.

Fomos a trote, de caudas bem levantadas e juntinhos, sempre descendo, em direcção ao sul, num festote de mijadelas em postes metálicos - vocês têm cá muito disso! - em pneus - uauf! fugi a tempo de uma bota de um taxista, grrrr!... não sei porque é que não dão valor à honraria da escolha que faço - e em esquinas; eu, claro, que ela comportou-se como fêmea recatada, esperando por um bom nicho de relva para se agachar.

E lá chegámos ao sítio do Glamour Contagiante bejense, que, embora não tendo estrelas de cinema nem encantos de restritas wine nights, não deixa de merecer uma visita.  Ficámos cá fora - sabemos bem que cão não entra (e muito menos em loja de chinês! Da China chegam-nos péssimos hábitos alimentares!) . E assim ficámos, sentados a mirar para os abat-jours coloridos da montra e toda a parafernália de objectos a perder de vista, aos quais os nativos bejenses se esforçavam, em rodopio de constantes entradas, em encontrar alguma utilidade.

O ritual consiste, basicamente, em  passear por entre corredores cheios de prateleiras, tentar perceber para que serve este ou aquele objecto, puxar do telemóvel e gritar à prima ou à vizinha  - com aquele tom cujo treino ancestral de chamada dos borregos na planície inculcou um vozear  geracional de garganta aberta, em que a todo o momento se espera que as tripas saltem cá para fora - onde se está e se ela não precisará disto ou daquilo, experimentar levar dois ou três ou trinta objectos, esperar numa fila o tempo que for necessário, suspirando pacientemente, até chegar a sua vez,  pagar e sair de saco de plástico na mão.

E assim, eu e a Fifi vimos uma amostra variada de humanos, que de outra maneira, não teríamos oportunidade de ver tão concentrada: exemplares seniores (muitos)  adultos e juvenis, gordos e magros, enérgicos e passivos, de forte e de fraca compleição - uma oportunidade única, garanto-vos, se bem que muito longe do glamour e da diversidade étnica que observava na nossa Harrod´s.*

As pessoas, de um modo geral - e os nativos de Beja não fogem à regra - não sabem o que hão-de fazer ao tempo que têm, e insistem sempre em comprar ou vender qualquer coisa. Parece ser um desregulamento genético da raça humana.

Ainda não perceberam que as melhores coisas desta vida não se trocam por dinheiro: uma boa sesta ao sol, o cheiro húmido da erva do campo, umas coçadelas nos costados - e, claro, respirar o mesmo ar na companhia de quem se gosta. Olhei para a Fifi. Estava na hora de a levar a casa. E de verificar se o meu inconstante pajem me cozinhara os fígados de galinha.

A passeata por Beja aguçou-me o apetite. Não descortinei qualquer glamour, mas contagiei-me na mesma.

I like it!

God Save the Queen and keep us fed and clean!



 *Aliás, uauf!, aconselho-vos a darem lá um salto, num destes voos domingueiros Beja/ Heathrow, partindo, por exemplo, no dia 18 de Setembro e regressando a 25 - uma semana não é nada para se fazer compras em Londres!  O custo da viagem Beja/Londres/Beja é de 230,00€, mas, se quiserem ter a maçada de passarem pela vossa capital, podem seguir e voltar por 86,42€.  

Eu sei que a opção é difícil - entre o  vão orgulho de levantar voo em terras alentejanas, e a perspectiva de poder gastar a diferença em mais alguns objectos que hão-de atafulhar a vossa casa... mas... vivemos num pais livre, uauf!

segunda-feira, 6 de junho de 2011

the day after

Continuam os dias cinzentos por terras de Beja, uauf! Deve ser para que não tenha saudades da minha Londres distante. Mas, com tanta distracção que tenho por aqui, nem sequer tenho tido tempo para essas armadilhas da memória.

Ocorrem-me uns versos rasgados a canivete na porta da casa de banho da tasca do  Barbosa, um tipo que  mais se parece com o barbeiro de Fleet Street  em versão macho luso - isto é, com uma barriga  avantajada de cerveja, torresmos e outros mimos culinários que vos encurtam a esperança de vida  e cujos sinais vocês parecem desprezar- e que serve, gritando, versos  seus e de outros, entre os copos  de tinto que afunda no balcão.  Como ontem à noite tive de ir lá buscar o meu pajem, que bateu - muito desagradavelmente - com a porta de casa depois de ouvir não sei que notícias, e que vim encontrar, duas horas depois, de cabeça perdida dentro da sanita  (asquerosa) do Barbosa a vomitar, pude atentar nesta pérola literária, gravada a lâmina na tinta do contraplacado do lado de dentro da porta:

Sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final.
Se insistirmos em permanecer nela mais do que o tempo
necessário, perdemos a alegria e o sentido das outras etapas
que precisamos viver.

Não sei quem foi o sábio, estava assinado por alguém que se intitulou apenas de «Pessoa». Ainda há gente descomplicada.

A conversa, no Barbosa, exaltava os ânimos, e toda a gente parecia querer falar ao mesmo tempo, isto é, toda a gente que ali estava  - com as mãos ocupadas com  dados, copos, ou coisa nenhuma:  um idoso de muletas, dois maridos de olhar vago, um jovem tatuado, um jovem desdentado, uma criança deslocada, dada a hora e o local, e a mãe do miúdo, de rabo de cavalo a prender o cabelo oleoso, e com evidentes marcas de ser dependente da fêmea do herói. O tema que os afogueava e que os atiçava - como se estivessem a defender o portão da casa da invasão de estranhos - circunscrevia-se,  creio, aos universos das rosas e das laranjas; por mim, acho que se excederam na defesa das suas preferências olfactivas - sobretudo quando o sítio tresandava a ovo estragado, a urina depositada e a insecticida. 

Como todas as preferências,  não passam de um ponto de vista: onde há quem veja a garrafa meio cheia,  outros vê-la-ão meio vazia - mas, apesar de a garrafa ser sempre a mesma, há quem morra e mate por julgar o contrário. Os pontos de vista podem, no entanto, ser importantes: vocês, primatas verticais, tendem a fixar-se na cabeça uns dos outros: assim, onde vocês vêem aquilo que vos é dado a ver - corte de cabelo, barba feita, sobrancelhas depiladas, sorriso treinado - nós temos a vista ao nível da evidência que se tenta esconder:  solas gastas, sapatilhas no fio, sapatos com as costuras a rebentar.

Empurrei o melhor que pude o meu pajem até casa - a subida da ruela, que geralmente ele faz em 5m, demorou-nos mais de uma hora - entre soluços, choradeiras e cantorias. A Dona Margarida (aqui todas as mulheres são donas de qualquer coisa, mas penso ser um título honorífico, assim como o nosso «Sir»), uma balzaquiana bem nutrida de carnes e de bom coração, que tem rendas na janela - decerto para que os mosquitos não lhe entrem em casa - e que já por mais de uma vez me chamou de soslaio para me dar, na mão gorducha, suculentos pedaços de frango, assomou-se quando nos viu, e foi logo rudemente interpelada pelo meu pajem, que, tratando-a descortesmente por «tu», lhe perguntou não sei o quê, ao que ela respondeu rispidamente ter feito qualquer coisa «em branco». Percebi que ele ficou atónito e incrédulo - talvez porque pensasse que ela pintasse (mas o quê?... um quadro? uma natureza morta? maquilhagem? decoração?...) com outras cores - talvez o rosa, talvez o laranja - e entrou em casa como saíra, isto é: batendo a porta.

Eu dei um ganido à Dona Margarida que representava um pedido de desculpas por quem se comportara como um saforil. Ela sorriu-me - e esse sorriso aqueceu-me o coração, após o bulício confuso da noite.

O meu pajem não conseguiu passar do tapete da entrada: caiu e adormeceu.

Agora que me encontro estendido a quatro patas  no sofá, ocorrem-me, de súbito, estes versos de Shakespeare:

Se nada é novo, e o que hoje existe
Sempre foi, por falha a nossa mente
E, se esforçando por criar, insiste,
Parindo o mesmo filho novamente!

... porquê, afinal, tanta algazarra? 

RRrrrrrrr.... sinto-me um pouco tonto. Acho que é dos vapores que o meu pajem ressona.

Rrrrr... God Save... the Queen...
... and keep us... fad...
... and,,, rrrrr... rrrr... clean.