Acertei no meu pajem! É um macho sénior (sem, portanto, os devaneios próprios da juventude), com boas pernas (essencial para passeios) boa dentição (a saúde acima de tudo) e, sobretudo, boa alma (vê-se, na aura) .
Pois ao ver a megera que me queria enxotar de evento público - o Festival de BêDê de Beja, lembram-se? - tentou acalmar-me, dando-me umas festas no pescoço. Eu estava furibundo - continuava a rosnar à adolescente enraivecida e ela media forças comigo - e a minha primeira reacção - impensada - foi fincar-lhe os dentes nos dedos, a ele, que nada tinha a ver com o assunto; ao grito de dor, larguei a presa inocente e olhei-o nos olhos em 45/45: resulta sempre com as boas almas.
A rotação 45/45 é uma técnica de translação da cabeça em 45º para a frente e na diagonal, seguida de rotação de 45º. Deve ser realizada sentado. Ficamos assim, com ar de cachorro meio abandonado meio inquiridor, como se o outro decidisse da nossa sorte nesse instante - e, até hoje, não encontrei ninguém que resistisse a esta atitude - à excepção da Margaret, com quem estabeleci em tempos uma cruzada de encontros aparentemente fortuitos, na altura em que sonhava viver em palácios com mordomias - mas todos sabemos que essa dama de ferro tinha um coração de aço.
Ainda não percebi bem a ocupação deste meu pajem, nem como se chama. É um ser solitário, e isso agrada-me. Levou-me para sua casa, na cintura de Beja - mas já verifiquei que, aqui, tudo fica muito próximo, as distâncias entre pontos do perímetro da cidade não se comparam nem sequer a uma avenida londrina.
Casa simpática, um daqueles edifícios modestos que aqui se chama de moradia, muito parecido com os que a Grã-Bretanha construía no meio da selva para os nativos da África do Sul; deu-me banho e comida.
Do banho de água fria não pude fugir, mas terei de o fazer perceber que o próximo não poderá ser no terraço, à mangueirada (embora com shampoo amaciador com cheiro a pêssego): a banheira e a água quente canalizada são expoentes da civilização romana que aprecio e que julgo não terem ainda caído em desuso.
Em relação à comida, tive de me refrear, apesar da fome. Há coisas em que não podemos transgredir nem um milímetro, temos de ser firmes se queremos manter o nosso pajem educado. Evitei salivar quando vi os pedaços insossos de comida seca na tigela, e deitei-me ali mesmo no chão, com os olhos fechados, como se estivesse à beira do desfalecimento. Ele resmungou qualquer coisa e saiu de casa. Voltou pouco depois, com três latas de pedaços húmidos industrialmente tratados - nomeadamente soja, decerto transgénica, com aditivos olfactivos de fazer salivar um leão - mas, ainda assim, tive de lhe mostrar que, em relação à comida, não pode haver meias medidas: somos também aquilo que comemos, e a tolerância para a fast-food é zero.
Cheirei, procurando conter-me para não devorar, de imediato, a lata inteira, deitei-lhe um olhar de misericórdia e voltei costas. Fui deitar-me no sofá, território de que me apropriei - após a desistência do meu pajem em me sacudir ao quinto assalto - como vêem, foi fácil mostrar-lhe quem manda, nas situações de que depende a nossa qualidade de vida.
Ele ainda aproximou a tigela do meu nariz, no sofá, a voz dele agora era adocicada, quase melodiosa, mas, como acontece frequentemente aos seres humanos que são contrariados nas suas expectativas mais evidentes, passou para um tom rouco, como se rosnasse, e depois seguiu o protocolo esperado: da ameaça passou aos gritos, ainda de tigela na mão, depois à agressão física, enfiando-me o focinho na papa, cujo cheiro me ia levando à loucura - «deliciosos pedaços húmidos de coelho», penso eu - para passar depois à depressão, cambaleando, melancólico, pela sala - sempre de tigela na mão - e, finalmente, para o arrependimento, sentando-se, com um suspiro, a meu lado.
Eu, impávido, de olhos revirados - como o mártir São Sebastião, recebendo as flechas da injustiça, da prepotência e da ignorância humanas.
Finalmente: deu-me uma festa na cabeça que desceu pelo pescoço e costas. No meu ouvido interno soaram, triunfantes, as trombetas de uma vitória anunciada.
Só descansei, no entanto, quando ele voltou a sair porta fora, e o vi, pela janela, para onde me esgueirei, curioso, chamar os gatos da vizinhança, que acorreram, em miados operáticos, para o repasto inesperado.
Sempre ouvi dizer que a Educação é o bem mais valioso de todas as sociedades, e que o investimento nesta área nunca deve ser descurado, nem sequer em tempos de crise. Este investimento exige paciência, dedicação e esforço para atingir os objectivos que têm de estar claramente definidos, sem azo a dúbias interpretações. O episódio de hoje com o meu pajem é a demonstração viva de que se atingem resultados francamente positivos quando não se transige com a mediocridade ou a suficiência. E, nesta área, vocês, portugueses, deveriam aprender com os britânicos.
A prova deste sucesso está na tigela repleta de fígados de galinha com arroz que tenho à minha frente, a esfriar de uma cozedura branda. Uauf!... estou exausto... mas o meu pajem alentejano vai lá. É um pouco tosco mas...
... I like it!
God Save the Queen and keep us fed and clean!
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