segunda-feira, 6 de junho de 2011

the day after

Continuam os dias cinzentos por terras de Beja, uauf! Deve ser para que não tenha saudades da minha Londres distante. Mas, com tanta distracção que tenho por aqui, nem sequer tenho tido tempo para essas armadilhas da memória.

Ocorrem-me uns versos rasgados a canivete na porta da casa de banho da tasca do  Barbosa, um tipo que  mais se parece com o barbeiro de Fleet Street  em versão macho luso - isto é, com uma barriga  avantajada de cerveja, torresmos e outros mimos culinários que vos encurtam a esperança de vida  e cujos sinais vocês parecem desprezar- e que serve, gritando, versos  seus e de outros, entre os copos  de tinto que afunda no balcão.  Como ontem à noite tive de ir lá buscar o meu pajem, que bateu - muito desagradavelmente - com a porta de casa depois de ouvir não sei que notícias, e que vim encontrar, duas horas depois, de cabeça perdida dentro da sanita  (asquerosa) do Barbosa a vomitar, pude atentar nesta pérola literária, gravada a lâmina na tinta do contraplacado do lado de dentro da porta:

Sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final.
Se insistirmos em permanecer nela mais do que o tempo
necessário, perdemos a alegria e o sentido das outras etapas
que precisamos viver.

Não sei quem foi o sábio, estava assinado por alguém que se intitulou apenas de «Pessoa». Ainda há gente descomplicada.

A conversa, no Barbosa, exaltava os ânimos, e toda a gente parecia querer falar ao mesmo tempo, isto é, toda a gente que ali estava  - com as mãos ocupadas com  dados, copos, ou coisa nenhuma:  um idoso de muletas, dois maridos de olhar vago, um jovem tatuado, um jovem desdentado, uma criança deslocada, dada a hora e o local, e a mãe do miúdo, de rabo de cavalo a prender o cabelo oleoso, e com evidentes marcas de ser dependente da fêmea do herói. O tema que os afogueava e que os atiçava - como se estivessem a defender o portão da casa da invasão de estranhos - circunscrevia-se,  creio, aos universos das rosas e das laranjas; por mim, acho que se excederam na defesa das suas preferências olfactivas - sobretudo quando o sítio tresandava a ovo estragado, a urina depositada e a insecticida. 

Como todas as preferências,  não passam de um ponto de vista: onde há quem veja a garrafa meio cheia,  outros vê-la-ão meio vazia - mas, apesar de a garrafa ser sempre a mesma, há quem morra e mate por julgar o contrário. Os pontos de vista podem, no entanto, ser importantes: vocês, primatas verticais, tendem a fixar-se na cabeça uns dos outros: assim, onde vocês vêem aquilo que vos é dado a ver - corte de cabelo, barba feita, sobrancelhas depiladas, sorriso treinado - nós temos a vista ao nível da evidência que se tenta esconder:  solas gastas, sapatilhas no fio, sapatos com as costuras a rebentar.

Empurrei o melhor que pude o meu pajem até casa - a subida da ruela, que geralmente ele faz em 5m, demorou-nos mais de uma hora - entre soluços, choradeiras e cantorias. A Dona Margarida (aqui todas as mulheres são donas de qualquer coisa, mas penso ser um título honorífico, assim como o nosso «Sir»), uma balzaquiana bem nutrida de carnes e de bom coração, que tem rendas na janela - decerto para que os mosquitos não lhe entrem em casa - e que já por mais de uma vez me chamou de soslaio para me dar, na mão gorducha, suculentos pedaços de frango, assomou-se quando nos viu, e foi logo rudemente interpelada pelo meu pajem, que, tratando-a descortesmente por «tu», lhe perguntou não sei o quê, ao que ela respondeu rispidamente ter feito qualquer coisa «em branco». Percebi que ele ficou atónito e incrédulo - talvez porque pensasse que ela pintasse (mas o quê?... um quadro? uma natureza morta? maquilhagem? decoração?...) com outras cores - talvez o rosa, talvez o laranja - e entrou em casa como saíra, isto é: batendo a porta.

Eu dei um ganido à Dona Margarida que representava um pedido de desculpas por quem se comportara como um saforil. Ela sorriu-me - e esse sorriso aqueceu-me o coração, após o bulício confuso da noite.

O meu pajem não conseguiu passar do tapete da entrada: caiu e adormeceu.

Agora que me encontro estendido a quatro patas  no sofá, ocorrem-me, de súbito, estes versos de Shakespeare:

Se nada é novo, e o que hoje existe
Sempre foi, por falha a nossa mente
E, se esforçando por criar, insiste,
Parindo o mesmo filho novamente!

... porquê, afinal, tanta algazarra? 

RRrrrrrrr.... sinto-me um pouco tonto. Acho que é dos vapores que o meu pajem ressona.

Rrrrr... God Save... the Queen...
... and keep us... fad...
... and,,, rrrrr... rrrr... clean.

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