sexta-feira, 10 de junho de 2011

Dia da Torneira

What a day! O meu pajem acordou hoje visivelmente bem disposto, abanou, à frente do meu focinho, uma caixa, onde qualquer coisa no seu interior se deslocou ruidosamente, e anunciou:

- É hoje! O Dia da Torneira!

A torneira - the faucet - é um objecto crucial no estancar ou jorrar de conteúdos. Geralmente água - mas nem sempre. Há quem feche a torneira das notícias, quem abra a torneira das condecorações, quem feche a torneira dos empréstimos, quem abra a torneira da emigração.

E assim, com uma boa disposição e energia invulgares, trauteando o Toreador razoavelmente afinado, dispôs-se, enfim, a substituir a torneira da cozinha cujo pinga-que-pinga há muito dera lugar a um fio de água constante, e, de há 48h para cá, obrigara ao fechar de outra faucet, a da segurança.

Eu mantive-me no  sofá, embalado pelo refrão «Toreador, en garde, Toreador, Toreador!», enquanto retirava, do pó da arrecadação, a maleta com meia dúzia de ferramentas, enferrujadas pelo desuso dos anos. Manter o nosso pajem entretido e satisfeito é meio caminho andado para a nossa tranquilidade - e, como, com os anos, vamos ficando mais sábios, cabe-nos orientar a permanente insatisfação e a excitabilidade humanas para actividades que nos deixem, a nós, canídeos, sossegados no nosso canto.

Interrompeu subitamente a canção quando, retirando uma chave inglesa - modesto contributo da Inglaterra aos mecânicos,  canalizadores e jogadores de Cluedo de todo o mundo - percebeu que os seus rolamentos estavam de tal modo colados e perros que nada havia a fazer. O rosto contraiu-se perante aquele contratempo - não, NÃO!!! Hoje tinha sido designado o Dia da Torneira!

Sentou-se, com aquela melancolia depressiva que tantas vezes o assalta, segurando a cabeça entre as mãos.
Eu sabia que tinha de despertar do meu lânguido torpor, se queria ter um dia pacífico; assim que saí porta fora e fui chamar a Dona Margarida, do outro lado da rua, uma boa alma, sempre pronta a escutar o outro - e que, aos meus latidos, supôs logo que a casa estivesse em chamas.

A Dona Margarida veio correndo como pôde atrás de mim, nos seus chinelos arrastados, entrou em casa e deu com a cabeça caída e segura por ambas as mãos do meu pajem - que ficou bastante embaraçado pela inesperada visita.

Palavra puxa palavra - muito precisam os humanos de falar para se entenderem! (e, por vezes, nem assim...) - a Dona Margarida saiu apressada para logo regressar de sorriso no rosto - e de chave inglesa na mão.

Como é fácil contentar um macho humano ferido pela desilusão! Apenas com a visão da chave inglesa, logo se animou e recomeçou a cantoria; a Dona Margarida seguiu-o para a cozinha comparando-o, embevecida, a um Carreras -  e eu, do sofá, pude, de vez em quando, erguer a pálpebra para seguir os acontecimentos.

Que se relatam deste modo: 
- retirou a torneira da parede (sempre cantando, a Dona Margarida aplaudindo), 
- colocou a torneira nova nos orifícios da parede (lançado em poderoso canto, já depois do refrão, a Dona Margarida, de braços roliços, segurando na torneira, enquanto ele torturava as roscas com a chave inglesa )
- pediu - sempre cantando, numa perigosa euforia - à Dona Margarida para ir ao pátio abrir a torneira de segurança, «por favooor... » (em si b) 
- constatou que a nova torneira não só não pingava e, que, portanto, vedava competentemente  a água, como que abria e fechava na perfeição (a Dona Margarida, feliz, regressando do pátio, e, pelo caminho, dando-me uma coçadela nas orelhas)
- e, num daqueles repentes que decidem o trágico destino dos homens, lançado de chave inglesa em riste, decide apertar mais e mais o que já estava sobejamente apertado (a Dona Margarida esbracejando com as mãos em aflição de sinalização para a avioneta que se parece despenhar); ouviu-se um «crac» surdo - e, de pronto, antes mesmo que a água começasse a jorrar furiosamente por entre as juntas da torneira, em todas as direcções - percebemos que a rosca partira, e a torneira nova se tornara, definitivamente, inútil. 

Completamente encharcado, o meu pajem parecia ter sucumbido perante o peso dos acontecimentos. A Dona Margarida retrocedeu o caminho para o pátio, ao socorro da torneira de segurança; procurou depois uma toalha para o secar, e suplicou-lhe que mudasse de roupa, enquanto lhe fazia um chá.

Como o chão da cozinha ainda está alagado, e a água começa a chegar à sala, para prevenir qualquer escorregadela, saí de casa em busca do canteiro mais próximo que me mereça uma mijadela. This little town está estranhamente parada. Parece que os bejenses levam muito a peito a celebração, em recolhimento e em exercício de mea culpa nacional, de um ilustre zarolho que deixaram morrer de fome e de esquecimento enquanto legava, às gerações futuras e ao mundo, a melhor poesia portuguesa.


God Save the Queen and keep us fed and clean!

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